cartas

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#10 - Movimento dos barcos

 

Longe daqui.


Querido Eduardo,

Escrevo após duas taças de vinho. Ontem voltei de Bruxelas. Dois dias mágicos, como num filme da Julie Delpy, como em um texto seu. Estou "entre férias", se diz assim aqui. E este ano tem sido bom para mim, mesmo que eu sempre esteja reclamando de como está  difícil e triste e morno. Mas viajei um bocado e viagens me fazem mais inspirado, inspirador... mais eu. 
Morar na Holanda não é fácil. Não é fácil no sentido burocrático, pois em todos os outros é exatamente o oposto: fácil demais. Confortável demais. E navegar sempre é preciso (nunca concordei com esse dizer, mas o vivencio tanto agora que é impossível desapegar-me do conceito).
Portanto viajar me faz mais humano, mais atado à cultura, povos, arquitetura, natureza. À vida em geral.
Esta viagem à Bruxelas, particularmente, foi uma daquelas típicas do século XVIII e XIX, daquelas viagens que são escritas nos livros biográficos, ou em painéis de museus. Minha estadia num pequeno apartamento no bairro de Marolles, com uma bela vista para o Palácio de Justiça, foi memorável. Rodeado de livros de artes, discos de música francesa e polaroids de namorados desconhecidos, acordava com o sol invadindo o quarto-sala, o barulho da louça quebrada na praça logo abaixo, onde um mercado de pulgas se estabelecia todos os dias. 
Apesar de curta, viver este momento comigo mesmo numa cidade totalmente virgem para mim foi gratificante. Sair da Holanda sempre causa uma surpresa atordoada, já que o país é conhecido por uma imagem quase perfeita, mesmo que apenas criada por mentes românticas.
Tive um sentimento similar ao viajar pelos Alpes. A mínima visão de montanhas geladas e paisagens paradisíacas – de acordo com o meu conceito pessoal de "paradisíaco" – causou algo em mim que ainda não processei direito. Nestes momentos específicos, fico em paz comigo mesmo, em silêncio apaixonado, mudo de emoção. E o desejo mais constante é de compartilhar meus olhos com meus amigos queridos. Voltei para casa surpreendentemente queimado de sol, como se tivesse ido à praias tropicais, quando na verdade, passei frio e visitei lagos suíços.
Talvez, depois do quesito segurança, a possibilidade de viajar por países vizinhos seja o maior atrativo europeu, ao meu ver. Poder conhecer novas culturas, desintoxicar-me do ar conhecido e redescobrir-me em outros terrenos e pessoas, montanhas e lagos, é da maior importância. Renovar-se. Mil vezes recomeçar.
E agora, meu barco se movimenta de volta às minhas origens. Quase dois anos desde que pisei em terras baixas, volto-me à Piratininga. Rever a família e amigos que provavelmente mudaram (mas não tanto quanto eu) será uma experiência interessante e também muito aflitiva. Às vezes, na intenção de relaxar e na gula de visitar um número ímpar de lugares, o estresse se sobrepõe ao prazer e tudo se torna cansativo, desgastante. 
Enfim, não pontuo esta carta como definitiva, surpresas me esperam em São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco - meus três estados de sangue. Prefiro manter-me aberto aos mistérios e redescobrir-me também nos lugares em que cresci e dos quais nunca passei tanto tempo tão distante. Vai ser bom voltar para casa.

Nos vemos para rodar um pouco mais num carnaval fora de época,

Henri

H Badaröh