#16 - Redescobrir
Longe daqui. Aqui mesmo.
Querida Sophia,
O ano é dois mil e vinte. Há cinco vivo num país chamado Holanda/Países Baixos. Há pouco mais de um, estive em minha terra natal, Pindorama/Brasil. Há muito tempo gostaria de ter escrito esta carta, mas eu me sentia impedido, como se houvesse um peso sobre meu peito, algemas nas mãos impedindo o bater do teclado no papel digital. Eu revolvi esta carta inúmeras vezes, pensei no que e no como, mas nunca consegui escrever, me concentrar. A falta de concentração me criava uma ansiedade imensa, que por sua vez também me impedia de escrever desde que estipulei que só poderia fazê-lo quando me sentisse bem. Um círculo vicioso que penso ter finalmente quebrado hoje. Acordei bem e feliz – primeiro dia que me sinto genuinamente contente desde que este ano começou. Não sei de onde vem essa felicidade, mas é bem-vinda. Ouvi uns discos do Caetano, abri as janelas para ar fresco entrar, limpei a casa e queimei palo santo. O sol está a pino, e talvez tal felicidade tenha que ver com isso. Por um pequeno acaso, consegui sentar e escrever.
Estamos em isolamento pois há um vírus pairando por aí. Acredito ser um contexto interessante para começar um conto futuramente... quando foi que tivemos a oportunidade de reticenciar nossa vivência, nosso cotidiano? Nem nossos avós puderam fazer isso. Por conta dessa introspecção coletiva, eu tenho pensado muito no meu papel como cidadão e artista. O ser artista tem gritado dentro de mim um grito mudo, porque não vejo muito a possibilidade de ser ouvido nesse mar que só dá peixe bom, onde todos são acatados socialmente pelas redes. Dá para ser necessário quando tudo já foi feito e exposto e pensado e dito? Fica a questão em aberto pois não tenho resposta pronta. Gostaria muito de poder focar no meu quadradinho e nas minhas atitudes e projetos sem olhar a quem. Existe quem diz que quem há de me apreciar ainda vai nascer. E é nesse que ainda não veio que preciso focar minhas energias e esforços. E tudo bem.
Já delineei em breves palavras o macro e o micro do momento atual. Agora tento inverter o microscópio e olhar para dentro de mim. Onde estou inserido e aonde vão meus pensamentos. Tenho pensado muito no Brasil, no que é ser e como ser brasileiro em qualquer lugar. Lembro-me da última viagem, dos dias que passei sem fazer muito, pernas literalmente para o ar, olhando o céu azular, ouvindo batuques e cedilhas. Os dias eram bons, mas existia sempre aquela agoniazinha esfregando-me as têmporas, sabe? Agonia de não-estar-aproveitando-tanto-quanto-deveria-estar-aproveitando-já-que-estou-em-meu-país-depois-de-tanto-tempo-e-deveria-estar-aproveitando. Aproveitar aqui deve ser lido, acredito eu, como produzir. E eis que o problema aparece. Diz meu analista que tudo é produção, tudo é roda viva. Se tudo é, por que essa necessidade angustiada de produzir mais? Minha viagem foi um momento colossal na minha formação como ser brasileiro e tupiniquim. Tropicalizar-me não veio com o intuito de romantizar a pobreza ou a cultura. Tropicalizar-me foi aceitar o processo de ser brasileiro como um todo, com os bons e os maus frutos inerentes do processo. Enxergar a beleza diária na composição da vida em terra brasilis. Ir à feira e sentir o cheiro de tudo que dá no chão, ficar embriagado de cores e aromas e gente e grito e lixo e tudo que compõe ir à feira. Visitar parentes e me empapuçar de estórias, de contos e causos, de sotaque arrastado e fala mansa: carambola, acerola, manga, cana. Redescobrir um disco do Milton ao visitar Belo Horizonte, presenciar a beleza de uma cidade fictícia, o horror das ruas ensangüentadas de genocídio indígena. E refazer ali os passos de um jovem eu que deixei para trás, catorze anos atrás numa estação de trem da praça central. Ficar de pernas para o ar no meio da cidade em que nasci, ouvindo o ronronar do gato preto que dorme em meu colchão, o céu, as ruas, os carros, os aviões, os satélites, o sol... ficar ouvindo o sol queimar o concreto e meu corpo abstrato. Tudo isso é parte do ser em estado presente – como há bem de se ver, o produzir e o aproveitar já foram alcançados. Como reencontrar-me com esse processo aqui na solidão é a grande questão. A barra mesmo é encontrar o Brasil dentro de mim.
Há cinco vivo noutro país. Reencontrar o Brasil interior é árduo, constante jogo de tentativa e erro. Entre minha viagem formativa e a felicidade instantânea de hoje, muito aconteceu. A análise, o estável, a revista, o pandêmico. Saturno me retorna lentamente, promovendo um esvoaçar de poeira morta. Eu não pedi pelo retorno, ele veio sem convite. E dá-lhe poeira a revirar. Me encontro nessa nuvem embaçada de memória, futuro e sal. Não sei mais das minhas decisões, do que nunca quis e do que quero para mim. Um pequeno dia, abri os olhos e me vi eu, adulto e grisalho e estrangeiro... que amargor! E quis ser criança de novo, e não ter que lidar, mas a produção não para nunca, o redemoinho continua a revolver a poeira e eu continuo a esquecer de viver. Eu acho que destino esta carta a você, Sophia, porque você é bicho livre e eu cobiço essa condição, essa possibilidade de ser e estar, simplesmente. Sonhar com uma casa de campo, longe da redoma artificial, do fluxo digital. Amigos, livros, filmes, discos, plantas. Verde, anil, amarelo, cor-de-rosa e carvão. O que importa. Cheiro da erva e gosto de pássaro matutino. E lá vou eu adocicar o sofrimento humano, e qual o problema? Na minha busca pela razão de estar e ser sem ser indagado, sem ter permitido, o mínimo que posso impor é essa felicidade analógica que enxergo brilhar fraquinha no seu nomadismo, Sophia. Me parece que não fincar raízes, que errar por aí, é encontrar-se de forma pura, concentrar a experiência num copo de corpo e só.
O afastamento social permitiu o privilégio de olhar mais apuradamente para mecanismo. Talvez, testemunhar a queda do capitalismo interior. Uma pausa-presente, em que posso ver no dentro que algumas buscas não se embasam em desejo, que muito mais foi imposto e esperado de mim que não por mim. E eu não quero mais. Quero gosto de vida, quero vontade de verdade. Trazer para o real todo o meu potencial esgotado, todo o viver que me foi tirado e dado e tirado de novo. Ceifar da fala as correntes que não podem mais ser mudadas e focar nas marés que continuam a marear e adaptar minha navegação. É o que dá pé: o retorno do real pedindo passagem e preferência.
O ano é dois mil e vinte. Minha aprendizagem dos últimos cinco anos me trouxe até este pequeno patamar coberto de prata. Vivi uma miríade de experiências e emoções que não dá para contar, mas nas entrelinhas sussurrei algumas destas peripécias para quinze pessoas que fazem parte de uma trilha que chamo de minha. Claro que há muitas outras por aí que formam meu quebra-cabeça, mas as peças-cerne estão todas aqui, anuncio eu. Se eu virasse pó de pau brasil hoje, provavelmente é isso que importaria. Estar na presença de quem me faz Brasil longe daqui, mas aqui mesmo também. O que eu procuro dentro de mim ainda vai nascer e quando nascer, espero ser maduro para a brincadeira de roda.
Saudades,
Henri