cartas

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#4 - Velha infância

 

Longe daqui.


Querida Carolina,

Vem aí um outono difícil de suportar, já prevejo.
Desde que cheguei aqui minhas memórias mais constantes são as de momentos empoeirados, a grande maioria deles relacionados com a minha infância. Ao crescer, acho até normal que pensemos mais nos bons primeiros anos de vida, da forma como tudo era simples e bucólico: comer, dormir, brincar. Um parque de diversões quase eterno. Saudosismo puro.
Me revelaram então que o fato dessa memórias emergirem agora era porque eu não estava mais em meu território habitual, na zona de conforto mental. Portanto, minha vinda para cá havia também destravado frequências cerebrais que há muito eu não usava, ou até mesmo desconhecia. Meus sonhos mudaram também, devo dizer. Se tudo isso é positivo, não tenho a menor ideia: será que lembranças aterrorizantes vão aparecer em algum momento?
Por enquanto vai tudo bem - se excluirmos o sentimento estranho que é desenterrar passados. Como quando decidimos morar juntos, você se lembra? Que loucura mais gostosa... nós cinco, aquele apartamento decadente no Brás, uma vida toda que ainda desconhecíamos. Ou ignorávamos.
É impossível não imaginar o que teria sido de nós. Como teria sido nossa vida, se seríamos agora mais preparados ou drogados ou... felizes. Mais felizes?
Acredito que provavelmente teria sido difícil, vide nossas personalidades nada convencionais. Mas a experiência tinha tudo para dar certo. Estávamos ebulindo, eclodindo, expandindo nossa visão de mundo.
Hoje, aqui, às vezes, ainda desejo isso. Mesmo com todas nossas diferenças, aqueles anos foram os melhores da minha vida. Viajar com meus amigos, rir até doer, beber cerveja barata, falar sobre qualquer assunto sem se sentir analisado ou julgado, fingir que o mundo não é maior que uma bola de gude...
A solidão é um veneno lento quando não é opcional.
Tenho tido pouquíssimo tempo para mim ultimamente. Se eu olhasse para meu próprio estado pelos olhos de outra pessoa, pensaria que essa afirmação é absurda, já que tenho tempo de sobra. Mas, ninguém sabe o que se passa dentro da minha cabeça, é mais do que gostaria de suportar. Um liquidificador de emoções, afazeres, compromissos! E também é um pouco por esta razão que endereço essa carta a você. Você entende isso. E eu entendo você, seus momentos caóticos, autodestrutivos. Este peso é nosso. Assim como quando sentamo-nos à mesa numa tarde fria, e compartilhamos leite e biscoitos. Uma das minhas mais doces lembranças.
Estou sempre tentando criar uma história em que pequenas atitudes turbulejem toda uma existência. E se uma palavra dita fosse capaz de matar uma pessoa no Japão? Penso nisso o tempo todo.
Talvez se tivéssemos feito pequenas coisas diferentes enquanto nossas vidas estavam cruzadas, talvez, teríamos morado naquele apartamento, tornado-o casa, uma estrutura viva e vulcânica. Talvez, numa realidade alternativa, estamos lá agora mesmo. Conversando, rindo, enquanto tomamos leite e comemos biscoitos. Nos vejo e percebo que aprendemos a ser felizes, rodeados apenas do que importa na vida: amigos, discos, filmes, livros. E nada mais.

Um beijo cheio de recordações,

Henri

H Badaröh