cartas

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#3 - Oração ao tempo

 

Aqui mesmo.


Querido Thiago,

As questões do tempo não saem da minha cabeça. Meu passado, o futuro, a velhice. Está cedo para pensar para onde é que a gente vai? Ou se preparar para as (inevitáveis) despedidas que vão ocorrer no caminho? É impressionante como os preparativos para minha mudança para cá pareciam infinitos e de uma velocidade torturante e, agora, o tempo é meu amigo. Aliás, o único amigo real. Preciso ver mais pessoas - senão qualquer dia desses a loucura me alcança…
Alguns meses atrás chegou a última caixa. As últimas memórias que eu deixei em São Paulo, livros, roupas, papeis. A caixa chegou dilacerada, corrompida e faltando peças. Parece até que era uma metáfora de como andam as coisas comigo. Me sinto desbalanceado, pensando muito nas muitas coisas que preciso/quero fazer e ainda assim não saem como no planejado. E enquanto isso, o relógio não para…
Ainda é 31 de agosto enquanto escrevo. Sinceridade é que esta carta não começou hoje. Começou lá atrás, em abril. Mas não sei o que me aconteceu... Bloqueei. Fingi não perceber este enorme elefante na sala. Procrastinei, disse a mim mesmo que terminaria depois, porém, meses foram passando. E passaram - o tempo é implacável, ininterruptível. Um semestre inteiro foi-se, mais precisamente. E me sinto um bocado estranho ao perceber que ainda tenho as mesmas questões, as mesmas discussões filosóficas comigo mesmo. O mesmo andar desbalanceado. O que mudou agora foi o tempo, digo, lá fora. Lá fora as folhas já deitam-se ao vento.
Mas conheci cidades, pessoas, festas, exposições, fotografias. Música. Música faz tanta diferença quando se está longe de casa... É como visitar um amigo de infância, lembro de todos vocês ao ouvi-los, os mestres, os arranjos que jamais serão feitos por estrangeiros. A música brasileira tem alma profunda e grandiosa: leva tempo para afogar-se de vez nela. Às vezes, é preciso ir embora. Ah, se não houvesse tanto oceano entre nós, como faz falta um abraço... Mas não posso me queixar de todo: vira e mexe recebo visitas do Brasil, quer dizer, de brasileiras por aqui. Amigas de São Paulo e do mundo. Tão saudosistas e perdidas quanto eu. Costumamos ir à praia, sentir o vento, ver o mar. Terapia em grupo.
Vê o que aconteceu? Sutilmente perdi o foco. Faz um tempo que não escrevo. Leva tempo para voltar a afiação, afinação. Mas saiba que escrever é um exercício que nunca vai embora de fato. Desaparece por um tempo, pega certa poeira, mas não sai. "Feito tatuagem..."
Para me dar coragem.
Vem muito por aí. Considere esta carta como um retorno e uma promessa. Vou tomar conta dos meus próprios ventos, como bom filho de Iansã. 1º de setembro já nasceu aqui.

E toma-te agora uma lufada (com carinho),

Henri

H Badaröh