Cartas para Longe Daqui / Aqui Mesmo

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#5 - Beira-mar

 

Aqui mesmo.


Querida Daniela,

Esta semana visitei um jardim (quase) secreto: jardim japonês, aberto para poucos e por pouco tempo. Um jardim escondido em um parque. E no centro deste jardim havia uma única solitária árvore de folhas vermelhas como sangue.
Este é meu primeiro outono de verdade. Aquela história das "quatro estações" não existe no Brasil, sabemos disso. Mas por aqui é tudo muito real, vívido, presencial. E é quase irresistível a vontade de querer levar comigo as milhares de folhas caídas e todas suas belas tonalidades - um mar seco de todos os formatos, tamanhos, cores. Muita beleza para meus olhos pueris. Acabei que não fiz nada e apreciei em mudo silêncio, como a natureza queria que eu agisse.
Sinto que também estou outonal por dentro. É um momento de calar e observar o que acontece ou deixa de acontecer. Tenho muitas dúvidas, muitos desejos e energia escassa - combinação que pode ser bastante frustrante. É cansativo notar que as folhas aparentam perder a vida, caem-se soltas e não há nada que possa ser feito para evitar o desprendimento: é uma vida extremamente passiva-agressiva sendo levada aqui. 
Assisto tudo numa televisão a cores.
Nunca pensei que fosse possível ter inúmeras longas conversas comigo mesmo, entretanto, é o que venho mantenho nesses dias frios. Observo as folhas secarem, caírem e só comento internamente, para mim. Falo sobre a vida que eu quero ter, das saudades do Brasil e da vontade de desaparecer, deixando para trás apenas rastros do que antes era a dita vida. Quem sabe só assim somos compreendidos: pelas memórias e resquícios? Não estou explicitando um pensamento suicida, apenas aprendendo a não tentar ser entendido. Se for para esperar pela empatia alheia, prefiro esperar Godot - ao menos saberei ter mais chances de um encontro.
Também sei que estamos em pé de igualdade... Não porque penso que vamos perder a esperança na humanidade, não, jamais. Porém, depois de algumas muitas quedas, aprende-se a não criar expectativas. A não esperar pelo inesperável. 
Aprende-se a tentar seguir a estrada sem esperar por qualquer escambo, recompensa. Aprende-se a apreciar a jornada em mudo silêncio. Ser outono para poder um dia ser primavera.
De uma coisa estou certo, contudo. Embora não ando esperando muito da vida, as belezas que recebo são de uma estima imensurável. E queria poder dividi-las com as pessoas que quero bem - faz-se necessário o partilhar. Dos muitos textos que pensei em escrever mas não o fiz, este é um que não me assombra mais. O paciente exercício de autodescoberta permite também que portas sejam destruídas, exploradas ou mesmo inventadas. E ainda que em algumas delas encontremos presentes grotescos, em outras a simples delicadeza solitária de uma única árvore de folhas vermelhas pode ser a peça-chave que faltava na história.
Ou o pontapé inicial de outra.

Cair sete. Levantar-se oito.

Henri

Henri BadaröhComment