#6 - Nuvem cigana
Aqui mesmo.
Querido Aleph,
Esta provavelmente é a última carta do ano, e a dirijo a você, primeiro moço.
Demorei para escrevê-la porque eu tentava decifrar o significado dela – ou o signo, como quiser. Queria que fosse poderosa, de forma a dar valor à ampulheta que representou este ano, ou apenas nomear alguns dos grãos que fizeram parte dela. Mas também queria que fosse poderosa ao explicar as mudanças que ocorreram em mim depois da última viagem à Paris, mês passado.
Era um encontro de amigos e saudades do Brasil. Planejávamos arte, vinho, risadas. Todos os três aconteceram, em diferentes graus. Porém, não foi tudo: também tivemos medo, apreensão, em especial do desconhecido.
Me interessam os medos. Dentre eles, o mais admirável é o do desconhecido e suas ingênuas nuances. Quer dizer, há medo mais simplista do que aquele em que não se tem certeza se há perigo ou não? O trovão do desconhecido faz parte da nuvem da dúvida.
Embora tenhamos passado por maus bocados durante a viagem, ela me despertou um lado adormecido que há muito buscava. Algo que se fazia necessário desde que eu cheguei nestas terras estrangeiras. Uma fome de vida que só quem tem a barriga vazia sente. E é preciso ter fome para comer.
Só mastiguei depois do choque, da realidade batendo à porta burguesa, da vida que me foi concedida naquela caminhada noturna de uma sexta-feira treze.
Duas ideias nasceram em mim este ano e tenho nelas pensado constantemente. A primeira é a missão da humanidade (se não da humanidade em geral que seja apenas da humanidade que em mim reside). Há quem diga que só o amor importa ou que a função humana é deixar algo para as gerações futuras, aquela velha ideia de "um mundo melhor". Não acredito em nada disso. Desenvolvi em mim mesmo o pensamento de que só a bondade importa. E quando falo em bondade não quero dizer a forma mais simplista da palavra. Digo bondade(s) em níveis graduais e/ou extremos. Desde um sorriso a alguém que acordou em mau humor até uma filantropia natural, sem terceiras intenções. Me entende? Ser bom é a melhor forma de combate: ataque e defesa indispensáveis num planeta tão mesquinho e covarde feito o nosso.
A segunda ideia é mais egoísta, interna. De qualquer forma a considero importante para todo e qualquer ser vivo pensante: autoconhecimento. Outra que também é difundida de forma superficial e simplória. Mas não, esta é uma prática que deve ser levada do início da consciência até o último dia da vida. Vida... eis uma filosofia democrática: todos morremos.
Descobri a autognose por acaso, numa tarde holandesa qualquer. Nos últimos meses passo tanto tempo comigo que entro em níveis de consciência tão profundos quanto qualquer psicanálise, qualquer técnica meditativa. Às vezes chega a ser doloroso e irritantemente histriônico, ouso dizer. Coitado dos que estão ao meu redor... Mas, a importância dessa solidão aparentemente triste, desse ócio aparentemente bobo, só os anos e meu trabalho vão dizer. Conhecer-se é entender a natureza humana, seus complexos, utopias e distopias. Meta dos meus anos porvir, do exercício infinito que é estar vivo.
Mas por que dizer tudo isso a você, Aleph? Em especial, você, pequeno deus-menino, que tanto aprende e tanto ensina, uma contraditória revolução inconsequente, inconsciente e inconstante. Na verdade... eu não sei. Senti vontade, como quando o morder da fruta é mais importante que a fruta ou a vontade de comê-la em si, sabe? O desejo é mais importante que a pessoa desejada? Onde estávamos quando nossa consciência ainda não se fazia presente, para onde foram os primeiros anos de nossas vidas (aqueles que não lembramos)? Estávamos em corpo-presente, dopados, ainda tentando entender qual é a transa de estar neste plano terrestre ou estávamos numa nebulosa, nuvem passageira, esperando a hora e a vez?
Imagino que as todos nós já tenhamos as respostas e são menos complexas do que se presume, afinal, tendemos sempre ao complicado. Talvez nosso consciente nunca morra de fato – sempre estivemos e estaremos por aí, em todos os lugares, deuses de nosso próprio universo. Como quando sonhamos, dentro desse lugar mágico e místico que é o País das Maravilhas.
A morte é um eterno sonho. Onde tudo acontece e nada nos fere. Elis já cantava Caetano: "não tenha medo não, nada é pior do que tudo", enfim...
Meu ano foi assim, uma lenta viagem ao fundo de mim. Intrigante o bastante, embora eu considere, em geral, que este tenha sido um ano ruim: não posso só levar em conta a minha caminhada, preciso analisar também a dos meus amigos, familiares e compatriotas. O Brasil anda enegrecido com um lodo odioso, de um povo conduzido por desgraça e espetáculo. Por um lado tenho sorte de não me desgastar naufragado no assunto e por outro sinto por meus queridos que continuam lá, tendo que lidar com a insensata maldade intolerante cotidiana. Vai passar.
Por enquanto, ficamos eu e minha música. Meus grandes discos, condutores de tanta verdade, tanta amplitude...! É só abrir os olhos (ouvidos?) e ver. Se deixarmos o coração bater sem medo, claro.
Evoé!
Henri