cartas

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#7 - O astronauta de mármore

 

Longe daqui.


Querida Mariane,

No último dia dezesseis fez-se o primeiro ano morando aqui. Que sensação estranha... Tanta coisa aconteceu que até pareceu fazer o tempo se estender. Usualmente é o oposto que ocorre. 
Reiniciar a vida num lugar qualquer tem algumas vantagens, e várias desvantagens. Posso soar ingrato, mas na verdade pouquíssimas pessoas sabem o quão difícil é ir para um lugar onde ninguém sabe seu nome, onde ninguém conhece seu rosto.
Reiniciar a vida num lugar qualquer exige altos níveis de energia mental, redescobrir-se, reorganizar-se em um ambiente estrangeiro e quase hostil. Tudo se torna parte de um grande exercício de paciência, solidão e aceitação.
Por exemplo, já aceitei bem o distanciamento de alguns amigos, alguns que você até conhece. Minha festa de despedida, de certa forma, fechou um longo ciclo. Todas aquelas pessoas conectadas comigo em um bar da Roosevelt presenteou e embalou um tempo que provavelmente não voltará, algumas faces que provavelmente não verei mais. É parte do grande plano: as perdas são inevitáveis. E reaproximações também: a velha história do valor ganho quando já é tarde. Ou por simples exploração de condições falsas de riqueza e poder europeus. Não, não existe nada disso aqui na verdade. Exceto pela segurança, aqui vive-se a mesma vida brasileira que no Brasil. Já comentei sobre isto em cartas prévias.
Portanto não quero me delongar e nem fazer um balanço. Ainda é cedo, amor. Eu trouxe o assunto à tona porque embora eu esteja muito feliz com o processo de autodescoberta, também me incomoda que minha vida (ainda) não tenha deslanchado como ameaçava acontecer em São Paulo. Quero dizer, quando eu estava no momento-chave de compreensão do meu papel social, político e profissional, interrompi a evolução. E recomecei longe de tudo. Voltei ao marco zero.
Agora eis que estou estudando novamente e vários dos meus medos retornaram em novas formas e cores. Queria ao menos ter certeza... Mas do que? Viver na casa dos vinte e poucos anos é assim. Um oceano de incertezas, de planos que nunca se cumprirão, de medos que nunca serão reais. Flutuar. Apenas ser.
Até mesmo minha forma de fotografar mudou. De uns tempos para cá a fotografia instantânea ganhou mais espaço, admiração, curiosidade. Estou mais interessado na efemeridade das coisas, no meu próprio passado. Interessado no processo de assimilação das memórias, da hierarquia dos pensamentos, disposições de importância.
Meu interesse agora é nos encontros e seus significados, como quando uma visita minha e de Sophia à Lívia em Paris criou uma série de resultados e repercussões. Faíscas que tomaram a pele, cicatrizaram feito tatuagem involuntária: sempre presente, constante, repleta de memórias. 
O futuro da arte vai ser uma experiência mediada por encontros.
Inclusive os que nunca aconteceram, como o de todos estes heróis já mortos em um ano que acabou de começar... No começo do ano eu mencionei para amigos próximos que seria um ano de fechamento, número nove. Por isso estou desde já preparando os cintos: a viagem será turbulenta.
O futuro está apenas começando. Enquanto ele não vem, me guio pelas análises do passado e das cartas de tarot.

Saudades artísticas de nós,

Henri

H Badaröh