ensaios y crônicas

Sobre Ser Sólido na Era do Aerossol

Ir embora e voltar com o rabo entre as pernas. E ir embora de novo. E novamente, voltar.
Eu acho que eu funciono um pouco dessa forma. 
Eu escrevo desde que me conheço por gente, desde criança. Meu primeiro texto foi uma tentativa precoce de autobiografia. Aos 9 anos! Ainda tenho a versão impressa guardada comigo: uma página e meia, um pouco rasurada, corroída, mas legível. E o que se lê nela é que eu desde cedo eu sempre quis ser bem-sucedido. 
Acontece então que cresci com referências de sucesso meritocráticas e coloniais e brancas. Se eu me esforçasse o suficiente, eu chegaria lá, não é? Não cheguei em lugar nenhum.
Mas ainda estou tentando lidar com as implicações e as frustrações causadas por essas referências. E esse texto é uma introdução de como lidar.

Faço parte da última geração analógica do mundo. Depois da minha, as crianças já nasciam conectadas via internet discada uterina. Discada, depois banda-larga, depois fibra óptica, depois 3G, 4G, 5G… em pouco mais de 15 anos, regredimos 51 (já explico). Lembro bem do dia que aprendi o significado da palavra technophobe, e aos poucos me tornei um destes tais technofóbos com o passar dos anos e o avanço das ondas. Não me considero conservador, muito pelo contrário, mas conscientemente faço um esforço colossal para não me deixar iludir pelos delírios da internet, tecnologia, smartphones, redes antissociais…

Nos primeiros anos da dita era digital, eu chegava da escola e utilizava a internet para encontrar letras de canções em inglês, para que eu pudesse traduzir. Perdia horas nisso, tanto que até criei uma pasta (física) repleta de folhas e mais folhas de lyrics. Quando não, ficava ouvindo CDs no tocador de música enquanto desenhava offline (quando não estava tentando baixar uma música em 96 kbps por três dias via compartilhamento). Às vezes me aventurava pelas pastas e configurações do sistema, o que me custou várias reinstalações e algumas dolorosas perdas de dados. Um pouco mais tarde, descobri o msn, no qual eu perdia várias muitas outras horas conversando com os amigües. Quando a primeira rede social brasileira aterrissou, eu gastei boa parte do meu tempo criando minha personagem virtual, participando de comunidades que me representassem como indivíduo. E também cultivando uma biografia que conseguisse traduzir o doce e o amargo da adolescência, disponível para quem quisesse ler. Mas grande parte dos anos dourados eu passei escrevendo no meu blog, que era meu grande refúgio contra todo o mal diário, toda a raiva encravada com a qual eu me deparava. Meu blog era minha montanha interior protetora e assim se manteve durante sete anos.

Corta para 2020. Nosso mundo ultra conectado, sempre recebendo recomendações, propagandas, notificações, lembretes, anúncios, estímulos, notícias, reclames, memes, gifs. Mensagens instantâneas, visualizadas e (não-)respondidas instantaneamente. X está online. Y está digitando… Redes sociais com função de chat em todas. Você pode iniciar uma conversa em X, responder em Y, e terminar em Z. Todas vigiadas. Timelines, vídeos, fotos e fotos e fotos. De tudo, sobre tudo. Eu, em casa, sozinho, ficando completamente neurótico, pensando em suicídio, porque não aguento o peso de não ter perspectiva, de não ter oportunidade, de não conseguir me decidir sobre o que assistir no meu tempo livre, sobre que livro ler, sobre que disco escutar. Como relaxar. O que fazer do meu dia. Como desligar o celular e o cérebro. O que fazer da minha vida. Quero falar com alguém, alguma alma que me ouça. Mas as pessoas não se telefonam mais, todas ansiosas. E conversar por mensagens não me satisfaz mais. Se vejo um bate-papo começando a se aprofundar, fujo logo, porque não existe prazer real numa conversa baseada em laconismo e efemeridade. Esboço um texto pedindo apoio aos amigües da rede social, mas logo apago. Não posso demonstrar fraqueza, eu tenho seguidores importantes, eu tenho um nome a prezar. Vulnerabilidade não é algo com o qual eles queiram se deparar enquanto veem fotos de comida, pets e bebês, gente feliz, gente bonita, gente pelada. Apago, engulo o desespero e tento controlar o transbordamento de emoções, porque eu não devia estar assim. Eu faço terapia… Por que estou mal mesmo fazendo terapia? Não faz sentido. Por quê?

Quem me conhece sabe da dificuldade que sempre tive com estar online. Meu conservadorismo digital é resultado da minha vontade de presença física, da vontade de viver, e aprender, e experimentar. Quem me conhece sabe das vezes deletei aquele perfil, e depois criei um novo, por medo de deixar de existir. E quantas vezes sumi por um tempo, e depois voltei fazendo uma cena, um textão, um desabafo sobre as razões de eu ter sumido. Quem me conhece já me viu desaparecer só para voltar depois, sim, com o rabo entre as pernas.

Mentiu quem disse que estar perto não é físico, ladainha de millennial.

Eu poderia me delongar aqui e delinear as típicas explicações sobre a minha aversão digital, mas vou me privar disso e focar no cerne. O computador quando me foi apresentado me proporcionava um trampolim para minhas experimentações de menino. Eu o utilizava em sua proposta original: uma ferramenta, um canal entre mim e minha criatividade, uma forma mecânica de ampliar meu potencial. 
Hoje, não só me tornei um servo de toda essa tecnologia, como também sou um produto para que as grandes empresas ganhem dinheiro com as minhas decisões e que ganhem dinheiro me vendendo produtos baseados nas minhas decisões. E lembrando que isso tudo mesmo sendo eu, que acredito questionar tudo e todos, tentando não cair no conforto da ignorância. Só posso imaginar a vida de quem nunca se pegou pensando em que diabos está acontecendo.

Eu já havia utilizado essa plataforma de textos. E removi todo meu conteúdo numa tentativa de apagar meus rastros. Mas aqui estou eu novamente, com o rabo entre as pernas, tentando lidar. Talvez a resposta para meus problemas com o social, com o pessoal, com o público e o privado, com o digital e o analógico, seja essa. Talvez eu precise entender que ninguém tem interesse no que eu digo, então eu posso viver livre do peso dessa responsabilidade estúpida de ser alguém, de ter algo para dizer, de ser bem-sucedido, especialmente num mundo onde todo mundo é alguém, tem algo a dizer e é bem-sucedido. A resposta deve ser essa: eu só preciso escrever e relembrar a trilha da minha criatividade adolescente. Voltar para mim, com o rabo entre as pernas. Se eu conseguir esse feito herculano, eu vou ficar bem, mesmo no meio de todo o caos.

Henri BadaröhComment
A Mão Medíocre

Pensar no meu particular existir neste tempo e espaço, o existir de uma criança nascida do encontro de dois perdidos. Pensar na existência frágil um ser que não entende ainda muito bem os mecanismos de sua vida, mas que, também sem saber, já tem seu caminho traçado por poderosas mãos, mãos que em vez de promover um movimento revolucionário, adiante! adiante!, uma turbina de energia cinética que leve ao potencial máximo… não. Estas mãos não estão a favor, estas lutam contra. As mãos de que falo lhe seguram pelo peito e lhe impedem o passo; elas não estão ali para levar-nos ao topo, mas sim ladeira abaixo — embora não tão explicitamente como eu tendo a elucidar. A sagacidade dessa uma mão é o que a faz tão difícil de combater. Ela trabalha incansavelmente por anos a fio, numa frequência baixa e constante, como um inimigo invisível que mata sem alarde, sem sinalizar. A mão de que falo enxerga cor e classe. A mão de que falo pende para um lado só, enquanto finge uma indistinção cínica, um véu frágil e translúcido que até mesmo eu, por tantos anos afagado por ela, consigo desvelar num só puxão. Hoje, já não tão desentendido dos mecanismos enluvam as mãos medíocres, só posso usar as minhas próprias para potencializar os trabalhos manuais que derrotam a mediocridade de certas mãos. E com tempo, de mãos dadas, conquistar o topo dentro de cada um de nós.

Henri BadaröhComment