Cartas para Longe Daqui / Aqui Mesmo

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#11 - Mais feliz

 

Longe daqui.


Querida Tamires,

Finalmente (para) você. Esta é provavelmente a carta mais difícil que tive de escrever nesse projeto até agora. Não é difícil porque eu não consigo me expressar, simplesmente porque me sinto mal depois de passar tanto tempo longe. Me sinto mal porque eu devia escrever com mais frequência, com menos atrasos. Me sinto mal porque procrastino tanto que quando abro a página em branco, me envergonho, quero esquecer, sumir, fechar. A página em branco me condena, como se soubesse que eu poderia ser bem mais, se tivesse um pouco mais de atenção, esforço, motivação... Mas, na realidade não escrevi porque eu estava tentando compreender os últimos meses, a minha viagem ao Brasil, o meu curso de mestrado, o(s) meu(s) relacionamento(s). 2016 foi um turbilhão do qual não sentirei nenhuma falta, obrigado.
Não ter escrito não é tão simples: um dos maiores motivos da falta de inspiração é que tenho estudado muito – mesmo que nem tanto quanto gostaria. Eu acho que estou sempre um pouco abaixo das minhas metas, eu sempre exijo muito de mim e nunca chego onde quero chegar, fico sempre um pouco abaixo, sempre morro na praia. Talvez eu esteja exagerando (lua em peixes), talvez eu tenha metas tão altas que meu padrão seja no mínimo bom, não sei. Definitivamente só sei que esta correspondência precisava ser para você, e você sabe o porquê.
As melhores das minhas memórias do Brasil foram contigo, na sua casa, o cheiro de arruda impregnado nas paredes e na pele. A viagem ainda está recente na memória, mesmo que o tempo ande de forma diferenciada por aqui. Parece-me fazer anos que visitei você, meus amigos, família, meu avô que já está para lá dos oitenta anos. O tempo não perdoa uma pessoa de oitenta anos, e aqui acontece o mesmo: se fecho os olhos, o ano passa voando, e passa e passa e passa. A distância é um bicho engraçado, com o qual não tenho experiência alguma. Quero dizer, a distância e o tempo: dois animais engraçados. É curioso viver longe do meu país, da língua que me alimenta, das pessoas que me compreendem. Sinto que aqui eu envelheço só, que aí vocês estão todos onde os deixei, congelados pela memória, conservados pela falta dela. Sinto que quando eu pisar novamente em São Paulo, vocês vão estar exatamente como me recordo, vão me abraçar com a mesma doçura, reclamar do meu atraso como se fosse ontem. 
Você sabe que nada disso vai acontecer. 
E não digo por maldade. É importante tanto para mim quanto para você entender a evolução das nossas vidas. Eu estou aqui, a cada dia que passa um pouco mais velho, o mesmo acontece por aí. Quando nos virmos novamente, estaremos em outro momento de nossas jornadas e só podemos esperar que seja bom, que não nos machuque, que seja eterno enquanto dure. Há dois anos que moro por aqui e estou lidando bem com os pequenos reencontros, espero continuar desta forma por outros dois, quatro, seis, se tiverem de ser por aqui. Quero acreditar que não importa o tempo que passe, amizades não morrem, não envelhecem, simplesmente se modificam, se adaptam, se tornam algo ainda mais mágico, místico, misterioso.
Aproveito a deixa para pedir desculpas por não estar tão presente quanto deveria. Dos brasileiros que mantenho contato, posso contar nos dedos da mão os que mando mensagens, procuro saber, atualizo em detalhes, envio os parabéns. Faço de um forma não-íntima, quase que por obrigação, mas não faço por mal ou por falta de interesse. É difícil manter essa chama. Pensar que meus amigos têm outros amigos, que se divertem, que conquistam seus desejos, que precisam de mim quando choram, é difícil. Prefiro evitar o contato, saber o mínimo possível. Como eu disse antes, o tempo aqui tem uma outra qualidade, passa diferente. E eu passo junto, tentando evitar as saudades e o saudosismo, porque quando eles vêm, eu me naufrago nos pensamentos e esqueço que tenho uma vida a ser vivida. De qualquer forma, não se sinta desencorajada a falar comigo – ainda gosto e preciso. Só não dou o primeiro passo por ele ser maior do que aguento de fato.
Estar em casa foi importante em vários níveis, e só posso compreendê-los agora, após meses longe de novo. Algumas das experiências que tive no país-que-não-conheço-mais me amadureceram como pessoa e como cidadão. Eu diria que não só a viagem em si, mas o ano inteiro me ensinou uma palavra que eu pouco usava em meu vocabulário: resiliência. Compartilho com quem queira um cadinho de bom senso.
Amanhã (hoje?) começo um novo semestre na universidade, no qual preciso desenvolver e apresentar minha tese. Estou tendo dificuldades com o tema, e não só o tema. O tema é a gota d'água. A vida acadêmica é por si só estressante, cansativa, desmotivadora e prosaica, mas é também enriquecedora. Será que vale o esforço? Será que vale a pena ter que lidar com pessoas que ainda utilizam um sistema educacional do século XIX para me permitir receber um diploma e estar apto como profissional? Tenho minhas dúvidas. Quanto mais leio, escrevo, aprendo, mais acredito na inteligência de meus antepassados, no poder da cultura popular, da fala de uma mãe conhecedora das ervas que curam o filho enfermo, da sabedoria de um homem que conta histórias que vão preencher o imaginário de crianças por anos e anos. Não há diploma no mundo que ultrapasse a magnitude da saber humano, da riqueza de um povo, do nosso elo cultural. Enfim, só um pensamento para ilustrar o que se passa aqui (dentro). Desenvolvo noutrora.
Aqui, aliás, já é dia dois de fevereiro, dia de festa no mar. Eu penso em você constantemente (só não digo, mea culpa). Hoje, entretanto, a conexão estava mais forte, aposto que é Iemanjá ordenando-me a te escrever, a mandar essa mensagem pelo mar oceânico que nos separa, eu daqui, você de lá. Perdoa que não escrevo mais outros dez parágrafos de experiências, parábolas e memórias. Eu gostaria, mas minha língua materna está enfraquecida pela falta de uso e pelo domínio estrangeiro. Não estou me perdendo, acho que nunca vai acontecer, mas deixo o alerta para ambos eu e você, é preciso saber lidar com as perdas, inclusive as do campo intelectual. Eu gostaria de falar, mas me faltam as palavras, mesmo assim, eu sei que a mensagem nas entrelinhas chega sã e salva. Você me lê bem. E eu te leio bem. Acho que isso é amor de verdade, não é?
Mantenha-se resistente, não corra perigo.

Volto logo,

Henri

Henri BadaröhComment