Cartas para Longe Daqui / Aqui Mesmo

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#12 - Metamorfose ambulante

 

Aqui mesmo.


Querido Diego,

Descobri por acidente que ainda não havia lhe endereçado uma carta. Pensei que sim. Lembrei que não. Pois bem, vou tratar de resolver isso, já estava um tanto na hora de escrever para você (e para mim).
Hoje é um dia estranhíssimo. Dormi pouco, fiz algumas coisinhas como passatempo e pensei muito em algo que não sei bem o que. Uma saudade de algo indizível, intraduzível, incomunicável. Aí você provavelmente reclama – com certa razão – da minha obsessão por aliterações, a forma como interrompo o pensamento com embelezamentos elitistas e eu só posso dar de ombros e rir, "gosto mesmo e daí"? O importante é estar consciente. Mas será mesmo que  estar consciente é suficiente?
Eu me desliguei de mim mesmo nos últimos meses. Mais por auto-defesa que por negligência. Na reta final dos meus estudos, a saúde mental vem em primeiro lugar. E para estar saudável, preciso desligar a chave-geral e deixar de me observar, me policiar e me criticar. Tudo bem ser na verdade uma ação paliativa, afinal de paliativismospaliativismos vamos promovendo mudanças, não?
Há bons anos que já não me reconheço como eu mesmo, é estranho dizer isso, mas em minha cabeça tudo faz sentido. Aliás, só nela mesmo. Por falta de palavra melhor, uso a que me veio primeiro e que me apetece: vessel. Como traduzir uma palavra confusa, a representação de uma ausência, um sentimento de não-existir?
A ciência não explica ainda. Talvez você tenha encontrado a resposta na religião, quiçá - não são nelas que se acredita em o que não se pode ver? Eles, os hômi, devem ter encontrado o caminho para o invisível – ou apenas se guiam pelos sinais e alertas oferecidos pelo sistema. Quanto mais vivo, mais acredito na simulação de vida-real. Tudo aqui é um grande e longo experimento conduzido por alienígenas de uma galáxia não-tão-distante.
Recentemente, por exemplo, estive em Londres. Pela primeira vez. Houve um atentado enquanto eu estava por lá. Minha segunda vez. Me desequilibrei um pouco ao descobrir, saí do restaurante e da minha falsa vida pequeno-burguesa com o gosto de bile na boca e o coração na garganta. Medo de morrer? Não, medo de explodir. Medo do medo, queria rir da minha atuação branco-europeia de primeiro mundo, mas dentro de dentro do teatrinho gourmet tinha um pouco de medo do medo, sim. O personagem fica tão delineado à forma do corpo que às vezes é difícil distanciar formato e conteúdo. Vessel.
Você deve se lembrar bem como a contradição faz parte da minha configuração como ser humano. Outros tendem a classifica-la como deficiência, mau-caratismo. Eu, por minha vez, vejo mais como uma necessidade, uma expressão, a possibilidade de não dicotomizar. Digo tudo isso porque percebi que introduzi a carta com a reclamação da minha condição de coadjuvante da própria vida. E agora, ao relembrar a viagem, a paranoia Pivística de Londres, em meio a brasileiras e gregos, percebi como eu estive atento ao meu corpo, a velocidade na qual associações são criadas por gatilhos acidentais. É impressionante. E estou deste mesmo jeito impressionado enquanto escrevo para você: extremamente consciente do estilo, do que digo e o que não digo. Que influência é essa?
Haja perguntas! Voltei, reli e terminei vários parágrafos com elas – que é uma maluquice, dado a ojeriza que tenho de perguntas sem respostas. Vai que eu escreva tipicamente críptico por receio de encontrar soluções nas entrelinhas da simplicidade...? Quebrar a cabeça sempre é mais prazeroso, de quando em vez até mais fácil que o fácil. Relacionamentos, amizades, família, profissão, educação, cidades, roupas. Quando as peças se encaixam, eu perco o tesão, bagunço tudo de novo, finjo-me de besta, e assim nada faz sentido, ou deixa de fazer. E de novo e de novo e de novo. Re-embaralhar as cartas como maneira de manter o interesse. Dificultar para facilitar. Só agora percebo que te escrevo porque... é, somos mais parecidos do que se pensa, penso eu. Pensa você?
Eu nunca sei onde as palavras vão me levar. Lembro-me bem de quando eu psicografava crônicas, sinto falta. Às vezes dou a besteira de reler e fico com certo terror ao perceber que não me lembro nem como nem quando nem onde, será que o talento mudou de lar, será que a fonte secou e não fui avisado. É um terror maior que Paris, que Londres, que qualquer vida-lazer na decadência europeia. O temor da resposta me leva a omitir a interrogação, não realizar o questionamento; fica para depois, numa mesa de bar, numa esquina da Augusta. Mencionei as "palavras" porque é sempre assim: comecei querendo ser um ser normal, contando coisas do lado de cá e terminei sentindo que na desculpa esdrúxula de uma saudade que pouco pode ser transcrita em texto, eu descobri um pouquinho mais de mim do que você. Ridiculamente egocêntrico. Peço perdão.

Com uma fatia de melão em sua homenagem,

Henri

Henri BadaröhComment