cartas

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#14 - Pra ser sincero / Vida real

 

Aqui mesmo.


Arianne e Joice,

Escrevo pela primera vez para duas pessoas ao mesmo tempo. Distintas, mas que estão guardadas no mesmo lugar em mim. Escrevo para vocês duas como forma de exorcizar um demônio que me segue há anos, e preciso exorciza-lo para poder seguir adiante.
O último mês foi especialmente difícil por anteceder meu aniversário. Sempre é, mas de alguma forma este foi mais pesado do que de costume. Talvez por minhas responsabilidades por aqui estarem se tornando mais e mais as de um adulto. Talvez por simplesmente eu estar preso nesse turbilhão de memórias brasileiras o tempo todo. Vai saber... De qualquer forma, vocês sempre me vêm, voltam, vão embora. As alegorias da vida! Santa ironia.
Arianne, você foi um furacão. A mulher do início da minha adolescência: aprendemos juntos, fizemos promessas, vivemos um romance, desejamos o mundo aos nossos pés. Com quantos casais nos comparávamos? Quantas músicas nos representavam? Quantos livros eram só nossos e de mais ninguém? Em pouco mais de três anos, três décadas de (crises de) riso, de abraços eufóricos e uma amizade interestelar. Um amor do tamanho do universo. 
E então vieram as cidades, os affairs, os amigos, a distância. E fomos nos perdendo de nós, até que já não sabíamos mais quem éramos. Quer dizer, eu achava que sabia, mas descobri através de você que não. Me senti traído por quem menos esperava, julgado por algo que nunca cometi. E na confusão, nas diversas versões do mesmo crime sem perdão, só nos restou esquecer que um dia fomos infinitos.
As lembranças, as cartas, essas ficam. E às vezes eu me deparo com elas, às vezes eu conscientemente busco por elas, mas nunca ouso falar sobre elas – porque ainda dá nós na garganta, ainda me faz perder a voz, ainda guarda devasta o peito, ainda faz correr lágrimas desoladas e desconsoladoras. O furacão passa, mas a chuva continua e continua e continua...
Joice, você foi meu rio, minha Rio, dançando eternamente na areia. Essa força da natureza, essa correnteza sem barreira, desaguando todos seus sentimentos, suas vontades, suas loucuras, seus medos. Tudo de uma só vez, sempre correndo, sem olhar para trás. Indomada.
Acho que devemos ter vivido várias vidas na vida que vivemos juntos. Você foi o alicerce do fim da minha juventude, a força feminina que (inclusive) me ajudou a descobrir a feminilidade dentro de mim. Quem me ensinou a entrar em equilíbrio através do caos, do excesso, da lascívia. E um dia, não mais que de repente, o bêbado decidiu se tornar sóbrio e a bailarina desequilibrou da corda bamba. E com muito pesar, eu precisei que deixar esse rio (que era tão meu) desaguar na imensidão de um oceano que eu não podia nadar. 
Eu assisti a tudo, primeiro do meu barquinho, mais tarde de meu aviãozinho e logo depois, da minha casinha de papel. À distância, sofrendo baixinho a cada ausência, a cada fotografia que ressurgia, a cada amigo em comum que não mais tão em comum era. Nossa amizade se apagou pouco a pouco, como uma vela que queima e queima até se consumir toda e completamente. Há um misto de desgosto e decepção aqui, mas pelo menos a dor no peito é diferente: é feita de risos, de danças, de beijos bêbados, de noites paulistanas, de madrugadas andarilhas. A dor no peito é feita de vazio, um oco que não pode ser preenchido por ninguém. Veio, fez morada em mim, e levou tudo embora. Fica o gosto, o vazio, o silêncio, a lembrança.
Escrevo para vocês duas porque devo muito a vocês: mulheres de personalidade forte, de inteligências tão distintas, de cachos e caracóis. Cravo e canela. Ambas parte intrínseca de mim, que formaram boa parte do adulto que sou, com a cabeça que tenho. E que embora tenham partido de forma abrupta e repentina, me proporcionaram alguns dos meus melhores anos, dos momentos mais felizes e das lembranças mais ternas. Percebo então enquanto eu escrevo, e somente hoje, às raias dos temíveis 27, que não quero realmente exorcizar o pensamento em vocês – mas na verdade, aceitar que algumas pessoas vêm, transformam tudo, seguem seus caminhos e só. 
Obrigado por revolucionarem o meu modo de ver, de agir e de pensar. Espero com sinceridade que eu tenha feito mínimo disso para vocês em recíproca. Obrigado por me amarem de forma tão avassaladora, de forma tão dominadora, que não havia espaço para nenhum outro amor na salinha de estar que era meu coração. E que reformou-se, reformulou-se, e por fim tornou-se casa para outros amores: mais intensos e resistentes. Amores que não aniquilam, só crescem e enraizam e frutificam. 

Foi preciso uma vida e um dia com vocês para desfrutar da eternidade do hoje,

Henri

H Badaröh