Cartas para Longe Daqui / Aqui Mesmo

Entre os anos de 2015 e 2020, eu escrevi cartas endereçadas às pessoas queridas e aos amigos do Brasil, num projeto que tomou forma logo após o início do meu processo imigratório e a subsequente experiência de tornar-se estrangeiro.

#8 - Primavera nos dentes

 

Longe daqui.


Querida Hellen,

Primeiro de maio. Desaniversário. O segundo que não acontece desde que me vim para cá. O segundo que acontece inteiro na minha cabeça, na parte que convém Alice. De alguma forma que não consigo explicar direito, associo contigo. Talvez pelas fotografias que sempre lembram a gente, nosso riso junto, sua presença fiel.
Os últimos meses não têm sido fáceis: muito estudo, poucos amigos. Às vezes até me esqueço de cuidar de mim. Às vezes acho que ofereço ajuda demais aos outros e acabo esquecendo de me ajudar antes de tudo. Faz sentido? Uma das atitudes europeias que eu deveria adquirir é a cultura do individualismo. Pelo menos um pouco...
Sinto falta de São Paulo. Minha cidade, minhas raízes, cada canto que contém tanto da minha história pessoal. Quero visitar logo, comer coxinha (de soja, claro), tomar açaí com gosto de cinza Consolação, apreciar um bom pastel de feira com caldo de cana. Aliás, que falta me faz caldo de cana - intimamente alcunhado como "elixir da vida", se brincar acabo até chorando quando tomar o primeiro gole.
Quero ir ao cinema, ao Ibirapuera, ver uma exposição boba qualquer, beber com todos esses amigos que tanto sinto falta - que não me fazem exótico, que não me comparam com ninguém, enfim, que me deixam ser quem eu sou.
Quero comer feijão com arroz contigo. Ir à Liberdade no melhor dos japoneses (que nosso bolso permita). Ou terminar a noite numa esfiha de queijo da vida. Agora, aqui no escuro da sala, soa tudo como um sonho distante. Talvez porque seja, mas é o que eu realmente desejo. Liberdade que nos uniu, num dia de domingo - igual à música do Tim.
Associo tantas coisas a você, mas não sei como nem quando ela foram se apegando ao seu nome, seu rosto. Acredito que são processos naturais, feitos de pequenas conexões físicas e mentais, impregnadas e reforçadas pelo tempo. Quando se vê, já está cativado...
Eu precisava escrever há muito. A formiguinha já estava me devorando de dentro para fora. Ando ocupado com leituras dos outros, escritos dos outros, definições estrangeiras e vocabulários complexos. 
Hoje, entretanto, fui ao interior da Holanda, que sempre me reserva surpresas. Um dia relativamente estranho, talvez por ser outro desaniversário desativado, talvez por eu ter dormido apenas cinco horas na noite anterior - cuidando mal de mim mesmo. Quaisquer que tenham sido as razões, o fato é que independente do quanto me diverti hoje, passei o dia na casinha do "e se...?", pensando nas possibilidades da vida e dos terrenos da mente e do universo. Em certo ponto, por alguns minutos, me sentei no chão de grama e quis ficar ali - como um gato, ou como nós enquanto comíamos bolo tomando suco de caixinha -, o sol no meu rosto como há tempos eu não tinha nem queria. Vai além do âmbito da ironia todas as reviravoltas da minha vida: o sol, o chão, o desejo... o eu. Nunca vou me adaptar à hipocrisia contemporânea da Europa. Sou tupiniquim e gosto de ser, de estar, de manter e expor. Um legítimo filho de Pernambuco com Minas Gerais, nascido e criado em São Paulo (as melhores terras fazem parte de mim). Enfim, é orgulho demais para o meu peito. E reafirmar isso em tempos negros como os que vivemos é um baita estatuto, acredito. Ainda mais quando os que dizem amar o país agora vestem camisetas da seleção de futebol... Vê se entende a loucura.
Pois voltemos para algum ponto do qual não estou muito certo. Digo que envelheço na cidade, mas de fato ainda não. Falta um pouco mais de um mês e tenho medo: a próxima casa é desejada e perigosa, repleta de referências e responsabilidade. Espero não pirar: estou preparando a colheita e os frutos que possam vir.
Ao mesmo tempo, sinto que já pirei faz tempo e agora o processo todo é apenas de organizar a piração. Talvez, mas há muito que entender ainda nessa estrada desvairada que é viver. Estou desvendando os caminhos. Portanto entenda esta minha carta mais como um entremeio. Volto em algum ponto do futuro - me aguarde!

Todavia, espero te ter sempre ao meu lado.

Henri